segunda-feira, janeiro 21, 2008

Animais de outra espécie...


Ser canicultor implica muitas contrariedades, a maioria das quais nada tem a ver com os cães, mas sim com animais de outra espécie - a humana. É muito frequente - excessivamente frequente! - sermos abordados por espécimes inferiores que manifestam vontade de adquirir, ou de obter gratuitamente, um Serra da Estrela. Podem ser de qualquer idade ou condição socio-económica, desejar um cão para guarda, companhia, criação ou por mero exibicionismo - mas todos revelam um traço em comum: o absoluto desprezo pelo criador sério e pelo seu trabalho, pela raça canina e a sua integridade e não raras vezes pelo próprio cão que pretendem obter.

Apeteceu-me escrever isto depois de um contacto, algumas horas atrás, com uma dessas criaturas. Abordou-me via SMS, declarando que não tinha meios para pagar o preço normal de um cachorro e indagando se eu teria algum disponível por um preço mais baixo. Por acaso, excepcionalmente, até tinha. Respondi. Seguiram-se mais SMS, uma troca de mensagens que me estava a fazer perder bastante tempo. Declarou-me nem sequer poder vir buscar o cachorro - eu é que teria de ir entregar-lho!!!! Já um tanto impaciente, tive a ingenuidade de lhe conceder o benefício da dúvida e sugeri que me ligasse. Respondeu que não tinha dinheiro e que os SMS eram gratuitos. Os meus não eram... Perguntei-lhe, já que não tinha dinheiro para telefonar, como é que tinha dinheiro para sustentar um Serra da Estrela. Como resposta, disse-me ter 18 anos, vários cães de grande porte, querer começar a criar Serras da Estrela... e que a minha pergunta tinha sido inconveniente!

De repente, o retrato adquire contornos: um adolescente cheio de energia e de vontade de produzir cachorrinhos lindos - para vender e ganhar dinheiro e deixar de estar dependente dos SMS gratuitos... Como fazê-lo? Simples: adquirir um qualquer exemplar da raça, pelo preço mais baixo possível, e ao fim de algum tempo começar a facturar... Não importa se o animal é ou não puro, se tem linhagens definidas e estudadas ou se é fruto de um qualquer acaso, se é saudável, típico e equilibrado ou, pelo contrário, se é filho de exemplares defeituosos e com baixo valor reprodutivo... Não passa sequer pela jovem e vácua cabecinha que se um criador vende um cachorro por um preço abaixo do normal isso significa que esse exemplar não terá, muito provavelmente, qualidade para reprodução. Mas para o fogoso rapazinho, isso não terá qualquer importância: remata, desrespeitosamente, afirmando saber muito mais de cães que eu (que ele nem sequer conhece) e, em tom de gozo, acrescentando, "a agir assim deve vender muitos cães". Mais ou menos isso. Não me dou ao trabalho, claro, de tentar reproduzir o calibre dos erros de português - de palmatória. A conversa digital ficou por aí. Achei que já tinha perdido tempo demais com uma tão alarve criatura. Não respondi. Provavelmente terá ficado muito satisfeito, pensando ter-me deixado sem argumentos.

A última frase revelou tudo o que eu precisava de saber: para gente desta (porque como este jovem imbecil, ignorante, petulante e ganancioso há muita gente, que usa e abusa do nosso tempo como se a nossa obrigação enquanto criadores fosse servi-los, como se a nossa actividade fosse paga pelos seus impostos) - o que importa é vender. Acham que deve ser para isso que trabalha um criador. Tomar-me-iam por lunática e tresloucada se tentasse fazer as suas pobres cabecinhas perceber que a única razão que deve levar alguém a querer criar uma raça canina ou felina ou de qualquer animal de estimação é melhorar essa raça. O aspecto comercial não pode nunca ser o que dita as regras, porque quando isso acontece não estamos perante um trabalho de criação mas sim o fabrico em série de animais.

O trabalho de um verdadeiro canicultor, sério e responsável, é muito difícil, dispendioso e implica muito tempo e estudo permanente. É preciso conhecer bem uma raça antes de se almejar começar a criá-la. Estudar as características morfológicas e comportamentais e as suas funcionalidades, as linhagens e a sua genética. Ler muitos livros técnicos e científicos, sobre genética, etologia, nutrição, veterinária, e observar demoradamente muitíssimos exemplares, de preferência a trabalhar (no caso do Serra, na sua função de guarda de rebanhos e de propriedades). Adquirir para iniciar o programa de criação cães de elevada qualidade, estudar as suas linhagens, submetê-los a rigorosos exames de despiste de doenças hereditárias, ter a coragem de pô-los de parte como reprodutores se se descobrir que têm problemas como displasia da anca ou que são portadores de genes responsáveis por doenças graves. Tudo isto - e muito mais! - torna a canicultura responsável uma prática muito cara e com pouco retorno: o preço praticado na venda dos cachorros raramente cobre as despesas.

Por tudo isto, não consigo nunca deixar de me indignar perante todos aqueles que entendem a canicultura como uma actividade lucrativa: adquirem dezenas de cães, de várias raças, sem qualquer qualidade, por meia dúzia de patacas, fazem-nos reproduzir em todos os cios das cadelas, aleatoriamente, dão-lhes uma alimentação pobre e um tratamento tantas vezes desumano, não procedem a quaisquer exames de controlo de doenças hereditárias. Com essa prática, reduzem custos, o que lhes permite vender cachorros (quase sempre de má qualidade, ou seja, pouco típicos e com elevado risco de virem a desenvolver problemas hereditários) a preços baixos. Essa é uma concorrência desleal com a qual nenhum criador sério pode competir - e esta situação é infelizmente cada vez mais comum e, in extremis, conduzirá à degeneração das raças caninas e de toda a canicultura. E, pergunto, em todo este processo, o que faz a entidade máxima da cinologia no nosso país, o Clube Português de Canicultura?

Se acha que tudo o que acabou de ler é irrelevante, se para si adquirir um cão não é muito diferente de ir ao supermercado comprar cinco quilos de batatas e uma grade de cervejas, então peço-lhe um favor: não nos contacte, não nos faça perder tempo, nenhum dos nossos cães poderá vir a ser seu.